Natal, Fé e Luto: o simbólico a serviço do cuidado

Escrito por Ana Paula Reis da Costa. Psicóloga especialista em luto, com mestrado e doutorado em Teologia pela PUCRS. Fundadora do Instituto Luspe.

Escrevo para dividir, com certa liberdade, reflexões absorvidas no cuidado com cristãos, durante o período de entrega para cuidados psicológicos no luto. Sempre me perguntei, afinal como fica toda essa simbologia do Natal no coração de quem está a um céu de distância de quem ama…

Descobri que essa pode ser uma partilha valiosa, por alcançar temas teológicos e psicológicos na travessia do suporte a vida na dor, mesmo para aqueles que não compartilham da crença religiosa.

Para os que não creem, vamos falar do mito bíblico acerca vida, morte e ressurreição de Jesus, que então, exatamente como mito, dispensa explicações, uma vez que se localiza num paradigma que não é o da ciência empírica. Antropologicamente falando, dos mitos a humanidade aproveita aquilo que pode fazer sentido individual, com expressões coletivas, diferentemente do que se espera de uma profunda experiência de fé que em geral toca, convoca e resulta em comunhão. Traz efeitos para a vida em comunidade.

Logo, o partilhado aqui não trata de convencimento, longe disso, está propriamente numa tentativa de análise da simbologia presente na narrativa da revelação. Exatamente como se um psicólogo pudesse com uma lupa derramar seu olhar e curioso para a linguagem e o sentido, ou seja, o a serviço de que os fatos e as características dessa história podem estar. Na verdade, trata-se de estudar o jeito “de-Ser” de Deus, quando decide descer a humanidade, nas razões pelas quais faz o que faz, conforme narrado e como o faz…

Para começo, Deus nasce, Deus é rebaixado a um bebê...Isso já é espantoso. Porque alguém com tantos “superpoderes” decidiria por esse despojamento? E como um bebê que se tornará uma pessoa, que não é tido como meio Deus e meio humano, mas totalmente ambos. Tão Humano quanto divino e tão divino quanto humano. Nisto ainda chega trazendo um convite, para que sejamos seus irmãos; reconhecendo que também em nós há certa divindade. Como isso pode ser, se humano e divino são dimensões tão paradoxais, bem distintas, como pode que estejam tão perfeitamente interconectadas em apenas uma pessoa? Por que a história assim se mostra?

Saint Cyran diz que este é o mais perfeito paradoxo, quando duas dimensões distintas convivem harmonicamente e juntas energizam uma à outra. No entanto… o que é que faz um paradoxo acontecer e funcionar tão bem? Diz o autor que só o Amor pode harmonizar diferenças e permitir sua plena convivência, sem deformação para cada um dos lados, com pacífica acolhida.

Psicanalistas nos ensinam que uma saudável estruturação psíquica só é possível por amor, alguém só se deixa atravessar por uma lei, ou norma que outro tenha lhe apresentado, se quem a traz, for conhecido e amado. Não é pelo domínio ou pelo poder que se dá a estabilidade a segurança no psiquismo.  Uma lógica binária de certo ou errado, bom ou mau, não dá lugar a processos que humanizam ou promovem a complexidade necessária, que dá origem a identidade e ao subjetivo, que de fato nasce somente do contato efetivo, próximo. O precioso contato com o outro e entre nós é o que liga e dirige nossos afetos. Talvez seja por isso que Deus vem, desce de seu lugar de origem para nos encontrar.

O Amorparece ser então a conexão que faz o paradoxo acontecer e funcionar muito bem.

E, por que mesmo Deus nasceu? Por que simplesmente não se colocou aqui?

Talvez porque quando uma criança nasce no mundo, renascem todas as esperanças de um futuro, de alegrias, do novo e também do desconhecido. Seria esse é um dos jeitos de Deus “de-Ser” que a história grifa?

A narrativa revela que Deus não apenas diz ao que veio (Palavra, Verbo), mas mostra, faz acontecer. Sua palavra é sua vinda e ação.

Porém, também deixa que possamos compreender as coisas em nosso tempo, com liberdade, sem imposições. Essas são as coisas que em Deus se mostram, umas dentro de outras. Elas nos permitem pensar…, mas o que mesmo está sendo dito aqui, o que está sendo mostrado?

Então entendemos que em Deus o que parece ser à primeira vista, pode não ser o que aparenta. Ele desce… desce para nos conhecer de pertinho, conhecer como é viver aqui. Para nos encontrar Deus desce. Esse é seu jeito de Ser e conhecer.

Em geral quando queremos falar com alguém ou encontrar alguém o chamamos para vir até nós…Deus faz o contrário. A narrativa mostra: É Ele que vem. O que isso quer dizer? Vem topando o seu despojamento, e chegando como um bebê, vem para crescer conosco, vem para nos dar a conhecer.

Sempre que penso nisso acredito que se Deus conversasse conosco e nós não o entendêssemos ele não diria: Você não me entendeu. Ele provavelmente diria: Me fiz entender? Pois toda sua linguagem é a de encontro.

Descer é o jeito de Deus conectar-se conosco. Ele se apresenta em nossa realidade como ela é, não exige sorrisos, a casa limpa, a mesa farta, a juventude, a beleza, a alegria. Ele desce e desce sem se impor, como um bebê.

Ele aceita, vive e acolhe o que somos, como somos. Não exige nossa subida.

Acredito que seja por isso que mesmo magoados, entristecidos e com revolta, quando enlutados, ainda assim não deixamos de conversar com Deus de algum modo. Talvez seja porque em seu silêncio Ele desce. Seu silêncio nos encontra. Desce e paga a conta da sua descida, sua crucificação diz muito sobre isso. Então conhecer Deus, de certa forma, é também sofrê-lo.

Sofremos quando escutamos a dor de alguém que nos encontra. E por vezes é descendo aos nossos porões que a reconciliação com a vida e o mundo acontece. Essa ressurreição que surge em nós.

Em Deus a cura ou a transformação acerca de algo nasce de uma entrega. Essa enorme descida em Deus é uma entrega, onde o sofrimento é um lugar temporário. Deus não quer o nosso sofrimento, pois em toda Sua história, atrás da cruz há luz, a ressurreição está lá.

 Talvez a história esteja nos mostrando o que de fato possa ser uma consolação… É uma descida e entrega, para na travessia da dor, em uma ação conjunta, reconhecer alguma luz, estar com, no solo (pés no chão, na terra, juntos, lado a lado) na ação de caminhar. Estar com o outro em sua solidão.

O Jeito de Amar de Deus é seu jeito de Ser, que não se assusta com a vulnerabilidade humana, ao contrário é nela que vê valor, força e verdade. Nasce como um bebezinho, sujeito a tudo e morre a morte real. Assim, Ele propõe pensar também o que é de fato Ser Forte. Ser na fragilidade e com ela. Não no oposto dela e nem a superando, mas a atravessando, crescendo, transformando e por ela sendo transformado. Isso é também o luto. Uma enorme descida, entrega e transformação. Aliás sempre penso que se a Igreja nasceu para dar um bom destino a todos os pertences de Jesus, a própria Igreja nasceu de um grande luto, como o custo no compromisso de amar Jesus e seu Espírito.

Bem, a história mostra que este é um Deus que se esvazia para nos alcançar. Se esvazia para nos conhecer e escutar, se coloca onde estamos, Se importa para dentro de nossa existência. O seu jeito de chegar é escutando, não chega falando, chega conhecendo e crescendo em conjunto. Escuta e conhece sempre antes de falar, é assim que se coloca, isso está em toda narrativa do Evangelho.

Quantas vezes nos colocamos para escutar alguém, no entanto não conseguimos deixar um espaço sequer dentro de nós livre para o outro.

Outro aspecto interessante da narrativa é porque Deus nasceu com pais?

Deus nasceu com seus pais talvez porque o Seu jeito de Amar é assumir que a solidão não é boa para nós, temos que ter alguém que nos cuide. Que se importe conosco, assim como devemos nos saber frágeis, para nos cuidar melhor também entre nós.

E, Deus foi julgado! Por que sendo quem É se permitiu a isso?

Uma análise da história sugere que o jeito de Amar de Deus é receber o que temos para oferecer. Deus não busca culpados, não aponta dedos, acolhe aquilo que para nós puder ser no momento em que estamos, seja como for, e só então nos mostra outra possibilidade. Ele nos ensina que primeiro se acolhe e só depois se resolve (sua história de vida nos mostra a ordem do cuidado que melhor funciona: descida, entrega, escuta e acolhida).

Sua entrega revela um jeito de amar que se deixa levar onde for preciso para que uma conexão aconteça. Encontro que pressupõe, mais uma vez, que nos deixemos atravessar por aquele que chega.

As características em Sua história denunciam a importância de deixar espaço aberto para o outro em nós, hospedagem; deixamos que o outro nos hospede, esse é o Êxodo: a saída para construção de algum nível de confiança. Amar é sair do seu conhecido território, e de todas as suas certezas para ir a outra margem. E receber como gostaríamos de ser recebidos.

Este é o grande “sacrifício”: o sim da saída, saída para além de si. A maior expressão do Amor de Deus no humano: sim eu me deixo ir até você. Deixo para trás o que penso, o que quero, deixo minhas ordens e demandas, deixo minhas necessidades para receber você em mim. Esse é o despojamento. Te escuto aqui e agora, não para te responder sobre o que sei, mas para estar contigo e te conhecer. Para com-você-Ser. E assim, também entre nós; uns com os outros. Essa parece ser a mensagem.

Quanta falta faz essa escuta no luto. Deve ser por isso que a escuta é tão sagrada.

E a crucificação? Por que, o que representa?

Um Amor em 4 direções, bem no centro de uma cruz. Amor que se torna possível porque Sua verticalidade (de cima para baixo) atravessou a horizontalidade do tempo (nascer, crescer, envelhecer, despedir-se…). É ali, bem no meio desse ponto, que esse Amor tudo alcança em nós. Toda a escuridão e também toda a vida que há na Luz, que a mesma cruz comporta.

Amor que chega em todas as 4 direções: direita, esquerda, acima e abaixo, ou seja, na dor, na angústia, na alegria, na tristeza de quem esteve e está dentro da vida humana. Nada, e nenhuma dor, ficam de fora. Seu Amor atinge tudo que é humano em cada canto do universo.

Deus, em Jesus, é Amor em Ato, dentro do nosso tempo! Na sua morte, é a lança horizontal do tempo, que na mão do soldado, perfura a verticalidade do coração da eternidade, que em Jesus, desde bebê veio nos encontrar, e então, abre o céu para nós.

Amor que permite e acolhe a ruptura: rasga os véus, as barreiras, destrói os grilhões do tempo, cria passagem.

Todo enlutado tem o mesmo atravessamento, a lança da morte também encontrou seu peito, então por Amor, transpassado pela eternidade. Parte de seu coração está aqui na saudade, e outra lá, na eternidade, no mesmo céu que o jeito de ser de Deus abre para os que creem a partir de Sua descida.

Então o amor é experimentado como um elástico dourado de alma a alma, no luto se estica para além do tempo, permitindo o paradoxo de aprender a viver em separado. E assim, a morte não venceu, não é mais a ausência da vida.

Essa é a força de-Ser de Deus na escuridão e na ausência. Amor que atravessa todas as portas, vai ao abismo do nosso maior desamparo e abandono na dor, desce ainda a mansão dos mortos. Desce aqui também e caminha em silêncio com os quase–mortos, os sem forças.

Descida que assume todo rebaixamento, vai ao caos e a destruição total acompanhar e buscar quem ama. Superioridade que só o amor tem sobre a morte. A Ressurreição é expressão de Sua força, a força de um Amor tão potente que em nós gera vida, nos dá fôlego quando combalidos.

Este é quem vem no fim de tudo nos reencontrar, na casa do amor, é Ele que a história conta, que atravessa toda a dor para nos alcançar.

Não é o “máximo” que vem nos encontrar, é o simples e acolhedor, não é o elementar, é o fundamental. Não é o mais rico e poderoso nos padrões deste mundo…É o infinito que tão humildemente escuta o finito. É Aquele que entrou aqui no nosso mundo, “pela porta dos fundos”, para nos mostrar que no Amor somos infinitos.

Nasceu na terra, um planeta pequeno da constelação. Em Israel: um nada entre as potências do mundo.

Em Nazaré: um nada dentro de Israel, uma das cidades que era das mais pobres de Israel. Ele que morre na cruz como alguém de existência fracassada.

Para quem crê…. Quem vem, depois de tudo, nos encontrar… é o extraordinário que viveu em você e com você, descido e “de-sendo” (Sendo para ti), no ordinário da vida.

 É Esse que nessa história vem nos reencontrar. É Ele que renasce nesse Natal.

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