Formação e Rompimento de laços afetivos

A perda de um vínculo considerado importante pode ser uma das maiores dores que o ser humano poderá experimentar. Suportar a ausência de alguém ou algo que era valoroso, exigirá um grande trabalho psíquico de adaptação e ajuste a um mundo, agora, avaliado como desconhecido. Inúmeros fatores se entrelaçam nesse doloroso processo de acomodação, e todos os recursos psíquicos para encarar a vida, neste momento, são desafiados.

A forma como os vínculos afetivos foram interpretados ao longo da vida e, em especial, durante a infância, tem papel fundamental no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento para a sobrevivência, e na maneira como eventos, comportamentos e situações da vida são compreendidos.

John Bowlby e seus colegas exploraram incansavelmente (e outros estudiosos ainda seguem investigando) a relevância do apego no desenvolvimento humano. Por meio de estudos e pesquisas baseados na Psicanálise, Biologia Evolucionária, Etologia, Psicologia do Desenvolvimento, Ciências Cognitivas e Teoria dos Sistemas de Controle (Dalbem & Dell’Aglio, 2005), descobriram que o apego é um sistema instintivo, ou seja, ele é primordial para a sobrevivência das espécies.

O sistema de apego é acionado em situações de medo e ameaça, e a busca por proteção e segurança operam automaticamente. Se o vínculo afetivo for compreendido como conforto, cuidado, proteção, disponibilidade, previsibilidade e afeto, consolidam- se registros de segurança interna que desenvolvem a capacidade de autorregulação e habilidades psicossociais de boa qualidade. Porém, se a conexão for frágil, confusa, distante, indisponível ou caótica, a busca por segurança fica comprometida e o desenvolvimento de estratégias defensivas se constituem como forma de proteção.

A Teoria do Apego, ao qual Bowlby foi o precursor, buscou compreender os impactos da privação de segurança e proteção no desenvolvimento global das crianças e os resultados enfatizaram a significância dos laços afetivos.

Estudos observacionais e testagens práticas verificaram a interação entre as crianças e seus cuidadores. Os pesquisadores descobriram que diferentes tipos de cuidados, ofereciam diferentes tipos de respostas pelas crianças. O comportamento destas se “moldava” de acordo com a disponibilidade física e afetiva do cuidador, sendo então dividido em duas categorias: inseguramente apegados e seguramente apegados.

  • Inseguramente apegados: as necessidades da criança não foram atendidas adequadamente. A insegurança no apego foi analisada e dividida em 3 subcategorias (evitativos, ansiosos ambivalentes e desorganizados).

Cuidadores (ou figuras de apego) de crianças classificadas como evitativas tendiam a apresentar dificuldades em tolerar a expressão de afetos negativos e esforçavam-se para cessar e/ou interromper a busca por proximidade. Já os cuidadores (ou figuras de apego) de crianças classificadas como ansiosas/ambivalentes eram inconsistentes. Eles intensificavam os estados emocionais negativos e de relativo desamparo, oscilando entre uma proximidade ansiosa e cuidados inconstantes. E o apego desorganizado era mais comum onde havia histórico de negligência, abuso físico ou sexual, e grave estresse socioeconômico. Os maiores complicadores estão relacionados a crianças inseguras classificadas como desorganizadas, pois elas receberam pouca (ou nenhuma) proteção de seus cuidadores (ou figuras de apego), que, muitas vezes, eram a própria fonte de ameaça. A criança ficava num dilema, pois a pessoa que devia protegê- la também era a origem de atemorização (Holmes, 2015).

  • Seguramente apegados: Nos relacionamentos seguros, os cuidadores aceitavam e acolhiam quaisquer sentimentos (positivos ou negativos) das crianças e não induziam à culpa ou à vergonha, mas ajudavam a criança a lidar com suas emoções. Crianças seguras são acompanhadas por cuidadores que sentem contentamento na interação e satisfação em participar do seu desenvolvimento. Estes ajudavam as crianças a atravessar ameaças e doenças, declaravam emoções positivas fortalecendo a segurança, eram base segura porque ofereciam suporte e incentivavam a exploração e porto seguro, proporcionando conforto pela proximidade, acalmando a ansiedade e tensão, quando necessário (Holmes, 2015).

As experiências iniciais de relacionamento moldam a forma como o self (eu), as relações e o mundo são entendidos. A representação e instauração dessas vivências chama-se modelo operativo interno que, depois de formado, tende a persistir e passa a operar inconscientemente (Ramires & Schneider, 2010). Esse molde serve como guia comportamental que prediz e interpreta reações alheias com base nas representações anteriormente introjetadas através das interações com cuidadores (Dalbem & Dell’Aglio, 2005).

A qualidade dos modelos internos (representações de si, dos outros e do mundo) resulta em padrões de apego. Estilos inseguros desenvolvem estratégias evasivas, ambivalentes ou desorganizadas nos relacionamentos, vulnerabilizando sua saúde

psicológica. O uso de estratégias inadequadas nas ligações inseguras resulta em baixa qualidade de vida emocional, deficiente capacidade adaptativa e, consequentemente, uma maior dificuldade para enfrentar circunstâncias adversas da vida. Em contrapartida, estratégias seguras, nas relações com outras pessoas, fortalecem, ainda mais, a coerência e a integridade emocional da própria pessoa e do relacionamento (Grossmann & Grossmann, 2004).

Os modelos são constituídos durante a infância e posteriormente governam a interpretação de si e do mundo e comandam comportamentos, ou seja, na infância a criança busca concretamente seu cuidador, já na fase adulta as representações dessa figura são ativadas possibilitando a regulação emocional (Mendes & Rocha, 2016), caso a história pregressa tenha possibilitado o registro de segurança na relação.

Inúmeros são os estudos que reforçam que relações seguras entre crianças e cuidadores principais, desempenham o papel mais influente, porém relacionamentos próximos com figuras secundárias (amigos, professores, colegas, etc.), também exercem importante influência. É possível desenvolver um eu relacional seguro, apesar da insegurança precoce de apego, desde que o sujeito tenha a oportunidade de estabelecer relações e viver experiências que resguardem e protejam sua autoestima. O predomínio de uma modelagem não impede que modelos operativos internos específicos possam se desenvolver em qualquer idade, a partir de novos relacionamentos (Bretherton & Munholland, 2008). Isto significa que, se a história não foi favorável, há a possibilidade de instaurar um nível maior de segurança de apego em novos relacionamentos afetivos.

Entender a formação de vínculos auxilia na compreensão sobre como o sujeito lida com um rompimento de laços importantes. Por este motivo observa-se uma gama distinta de reações diante da perda de um elo afetivo. Todo adulto carrega consigo sua criança interior e os aprendizados, as representações, interpretações, feridas e cicatrizes daquele período e os utiliza automaticamente (inconscientemente) em situações desafiadoras de vida.

Despedir-se de algo ou alguém com valor afetivo desafia os recursos de enfrentamento e potencializa estratégias defensivas. A forma como o ser humano funciona nas relações interpessoais, pode favorecer ou complicar o atravessamento de um processo de ruptura. O conhecimento sobre o valor do apego é aspecto fundamental para o cuidado. Neste sentido, a escuta e o acolhimento precisam ser responsivos e não invasivos, para que as necessidades daquele que sofre sejam atendidas, na medida em que este vai se adaptando a uma nova realidade, tendo inclusive a oportunidade de reavaliar antigas representações e favorecer laços afetivos mais seguros.

O momento atual, frente a situação de calamidade no Rio Grande do Sul, sinaliza para a importância do reconhecimento de um luto coletivo e dos milhares de lutos individuais. Como sociedade, numa escala mais ampla, é necessário resgatar a empatia, o acolhimento e a sensibilidade como fundamentos essenciais para a reconstrução de um senso de proteção e segurança. Reconstrução não é algo que se edifica da “noite para o dia”. Ela leva tempo, requer esforço e trabalho, demanda o assentamento de tijolo por tijolo, põe a prova as emoções, testa a resiliência. Por se tratar de um processo tão custoso, algumas condutas, como: negligência, cobrança por uma melhora imediata, falta de escuta e acolhida, invalidação de emoções, julgamentos, preconceitos, falta de conhecimento, dentre outros, além de prejudicar a adaptação, também podem desencadear maiores agravantes. Tanto na formação como no rompimento de um vínculo, enquanto seres humanos, temos a necessidade instintiva de proteção e segurança. Para Bowlby, “acumulam-se evidências de que seres humanos de todas as idades são mais felizes e mais capazes de desenvolver melhor seus talentos quando estão seguros de que, por trás deles, existem uma ou mais pessoas que virão em sua ajuda caso surjam dificuldades” (2006, p. 139).

Texto por Pâmela Lopes Monteiro – CRP 07/22837

Referências

Bowlby, J. (2006b). Formação e rompimento dos laços afetivos (4ª. ed.; A. Cabral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.

Bretherton, I., & Munholland, K. A. (2008). Internal Working Models in Attachment Relationships: Elaborating a Central Construct in Attachment Theory. In J. Cassidy & P.R. Shaver (Eds.). Handbook of attachment: theory, research, and clinical applications (2ª ed., 102-127). New York: The Guilford Press.

Dalbem, J. X., & Dell’Aglio, D. D. (2005). Teoria do apego: bases conceituais e desenvolvimento dos modelos internos de funcionamento. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 57(1), 12-24.

Grossmann, K. E., & Grossmann, K. (2004). Attachment quality as an organizer of emotional and behavioral responses in a longitudinal perspective. In C. M. Parkes, J. S. Hinde & M. Petter (Eds.). Attachment Across the Life Cycle. London and New York: Routledge.

Holmes, J. (2015). Attachment theory in clinical practice: A personal account. British Journal of Psychotherapy, 31(2), 208-228. https://doi.org/10.1111/bjp.12151

Mendes, L.S.T., & Rocha, N.S (2016). Teoria do Apego: conceitos básicos e implicações para a psicoterapia de orientação analítica. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(3):1-15.

Ramires, V. R. R., & Schneider, M. S. (2010). Revisitando alguns Conceitos da Teoria do Apego: Comportamento versus Representação? Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(1), 25-33.

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